Diferenças

A lua brilhava no céu enquanto que as luzes dos postes iluminavam todos os cantos da Afonso Pena, em Campo Grande (MS).

Todos os estabelecimentos estavam fechados e as poucas pessoas que circulavam com seus carros, pela rua, ansiavam por chegar logo em casa. Nas paradas de ônibus os pouquíssimos pedestres também aguardavam para poderem retornar aos seus domicílios.

Próximo dali, na Praça Ary Coelho, um grupo de adolescentes, vestidos de preto, maquiagem carregada, longos sobretudos e cabelos cobertos de gel, desciam a avenida chamando a atenção dos taxistas e dos garis. Apesar de quietos e com olhar sombrio, conseguiam se destacar por causa da luz amarelada dos postes.

Um deles, um rapaz alto, magro, de piercing no nariz, olhos esverdeados e cabelo curto espetado, vira-se para um dos garis, que havia parado seu serviço para observá-lo, e o indaga: "O que estás a olhar?" Sem demoras e sem responder, o homem retorna ao seu serviço.

Ao chegarem à Praça do Rádio, o grupo se acomoda embaixo de um poste, próximo à arena de shows. Uma garota de longos cabelos negros, vestindo um espartilho que destacava seu busto e suas curvas, olhos castanhos, unhas pintadas de preto e lábios negros, tira uma mochila pesadas das costas, a abre e, de dentro dela, retira vários livros de Álvares de Azevedo, Casimiro de Abreu, dentre outros autores ultrarromânticos, e os distribui para o restante do grupo.

Longe dali, em frente ao Shopping Campo Grande, uma mulher, de mais ou menos vinte e cinco para vinte e seis anos, corpo esbelto e seios fartos, longos cabelos loiros, olhos castanhos, de blusa preta e calça jeans, aguardava pelo 070; havia sido um dia duro de trabalho e ela só esperava poder chegar em casa, tomar um banho e ir dormir. Ao lado dela estava um rapaz encorpado, de óculos pretos, blusa preta, calça jeans e piercing no lábio inferior.

Até aquele momento um não tinha notado a presença do outro. O rapaz estava extremamente inquieto... A tarde que ele havia passado no Shopping não tinha sido nada boa e seu mau-humor estava próximo de o fazer explodir de raiva.

- Nossa! Que horas será que chegará esse ônibus, meu Deus? - Pergunta, para si e em voz alta, a mulher.

- Eu não sei! Mas acho que se Deus existisse de fato muitos males não assolariam a face da terra! - Responde rudemente o homem, fazendo com que a mulher se afastasse dele. - O que foi? Dói quando a verdade vem a tona?

A mulher finge não ter ouvido a indagação, já com o medo crescendo dentro de si. O homem volta a indagá-la: "Será que o gato comeu sua língua, moça?"

Para não contrariá-lo, a mulher responde: "Não... Desculpas... É, acho que realmente se Deus existisse muita coisa nunca teria acontecido no mundo".

O homem se levanta e dá alguns passos; volta-se para ela, tira os óculos pretos e a olha fixamente; um algor de morte passa pela espinha da mulher.

Novamente na Praça do Rádio, o grupo de adolescentes vestidos de preto se preparava para voltar para casa quando uma viatura da polícia militar os para. Já passavam das cinco horas da manhã. 

Um homem fardado e com expressão carrancuda se dirige ao que parecia ser o mais velho do grupo - um rapaz encorpado, piercing no lábio inferior, cabelo espetado, blusa e jeans preto, maquiagem carregada e olhos castanhos.

- Por favor, nós poderíamos falar um instante com o senhor? - Pergunta o policial.

O rapaz, sem responder, se aproxima do militar.

- Então... Soubemos que vocês estão aqui desde às onze horas. O que fizeram todo esse tempo?

- Lendo... - Responde o rapaz.

- Posso dar uma olhada?

O rapaz entrega ao militar um livro de capa dura, cor marrom e com somente o nome do autor legível.

- Álvares de Azevedo... Lembro-me dele... - Faz-se um instante de silêncio; um vento frio sopra entre as árvores da praça. - Por favor, me acompanhe.

- Por quê?

- Porque o senhor é suspeito de um atentado contra uma mulher que esperava pelo ônibus, no Shopping Campo Grande.

- Mas, nós não saímos daqui! Ficamos a noite inteira lendo e ouvindo música... O senhor não pode me levar para a delegacia por causa disso.

- Na verdade não... Mas testemunhas disseram que vocês ficaram andando pela Afonso Pena a noite inteira, dando a entender que passaram pelo Shopping, o que o torna suspeito.

O rapaz é levado, então, à delegacia, enquanto que o restante de seus companheiro retorna para suas casas, sem dizer uma palavra e apenas carregados pelo ódio de, infelizmente, terem escolhido por serem diferentes do restante dos demais.

Nenhum comentário:

Postar um comentário