Apologia ao crime

O diretor tinha acabado de chegar à escola quando uma mãe, literalmente soltando fogo pelas ventas, entra em sua sala, acompanhada por sua filha, uma garotinha de cabelos cacheados.

— Em que posso ajudá-lo, minha senhora? — Pergunta o diretor à mãe.

— Vim conversar a respeito de uma música que a professora passou para a turma da minha filha, ontem. — Responde a mãe, em pé, mesmo o diretor tendo oferecido os bancos à frente de sua mesa para que ela se sentasse.

— Música? Qual música?

— Se essa rua fosse minha.

O diretor, um homem alto de meia idade, parou por alguns segundos para pensar a respeito antes de responder, já que, até onde ele se lembrava, aquela música era inofensiva.

— Desculpas, minha senhora, mas não vejo nenhum problema com ela.

— Nenhum problema?! Pelo amor de Deus! O senhor, um homem formado, não consegue ver a atrocidade que estão ensinando para as nossas crianças? — Responde a mãe.

— Por favor, minha senhora, diga-me, então, o que há de errado com ela.

— Ela faz apologia ao crime!

— Apologia ao crime?

— Sim! Veja: "Dentro dele mora um anjo / Que 'roubou' / Que 'roubou' meu coração." Onde já se viu anjos que "roubam"?! — Diz a mãe, ainda mais indignada do que antes.

— Mas, minha senhora, este anjo — explica o diretor — não rouba "de fato" o coração, mas sim a pessoa se apaixona por ela.

— Ora! Por favor! Eu ainda quero entender como o senhor, um homem formado, não consegue ver a verdade, mesmo ela escrita ai! E outra, mesmo se for assim, quem é este anjo, então? Um pedófilo disfarçado em um "bosque que se chama solidão"? Pelo amor de Deus, senhor diretor. Fora que um bosque "chamado solidão"... Por favor! Nem para ser "bosque da alegria".

— Minha senhora... — Tenta argumentar o diretor, sem sucesso.

— Minha senhora coisíssima nenhuma! Isso de anjos que roubam corações... Ah! Tem mais... Quase já ia me esquecendo. Veja: "Se eu roubei / Se eu roubei seu coração / É porque tu roubastes o meu também". Ou seja, o anjo diz que a culpa de seu crime não é dele, mas da vítima! Ó céus! Como ninguém nunca viu isso? Além de apologia ao roubo, há também a criminalização da vítima... O que será a seguir, crimes contra animais?

O diretor, novamente, tenta argumentar que aquilo que a mãe estava fazendo era uma interpretação ao pé da letra; que a música era uma cantiga popular já bem antiga... Mas nada fazia a mulher entender ou tirar da sua cabeça que a música fazia apologia ao crime.

— Por favor, minha senhora...

— Já disse antes e volto a repetir: minha senhora coisíssima nenhuma! Ou o senhor chama a atenção da professora para que ela busque músicas realmente infantis, ou eu vou à política denunciá-lo!

Não teve jeito. O diretor teve que chamar a professora e pedir para que ela não cantasse mais, para seus alunos, a música "Se essa rua fosse minha".


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