O novo caso da barca do inferno e do céu

Em 1517 o mundo conhecia um livro chamado "O auto da barca do inferno", do autor português Gil Vicente. Infelizmente é somente isto que vou poder dizer a respeito dele, mesmo porque na hora em que meu professor de Literatura, um senhor de uns quarenta e poucos anos, chato que nem o cão, falava sobre ele, eu não tirava os olhos daquela que seria minha primeira namorada — e que namorada! Lamentavelmente não será esta a história que vou contar — talvez algum outro dia eu conte a respeito do muro da quadra da escola que Jenifer (aquela de quem eu não tirava os olhos durante a aula) e eu soubemos aproveitar "muito bem".

E por que eu comecei falando deste livro? Porque, segundo minha fraca memória (eu li apenas o resumo, na época; não entendi quase nada e fiz a prova com a ajuda do Lucas, um colega nerd que vendia as respostas das provas), ele fala sobre um rio e dois barcos: um que leva ao inferno e outro ao paraíso. Pode parecer mentira, mas eu vi estas duas barcas.

Antes de mais nada, apesar de eu beber de vez em quando... tudo bem, tudo bem... apesar de eu beber sempre uns goles de cerveja com os amigos, nunca fumei nem usei tóxico algum — e, por incrível que pareça, aqui se inclui até mesmo remédios. Ah! Também não sou louco! Ou seja, minha visita ao desconhecido aconteceu mesmo.

Indo direto ao ponto antes de eu mesmo começar a dormir, era um dia de chuva e fazia um frio siberiano. O vidro do meu carro estava embaçado, todavia, como eu conhecia muito bem a rua por onde sempre passava, voltando para casa depois de um longo e "duro" dia na prefeitura — e, acredite em mim: se você conhecesse minha secretária, Luana, entenderia o porquê dele ter sido "duro" —, eu dirigia tranquilamente, pensando em minha querida esposa e no meu filinho que havia acabado de nascer. 

Nunca entendi o porquê de algumas vias terem o limite de 50 km/h sendo perfeitamente possível andar a 80 km/h ou até mesmo a 100 km/h. Por isso, como sabia exatamente onde ficavam os (malditos) radares, eu ia a míseros 100 km/h, afinal, quem compra um carro potente para andar feito uma carroça?

Eu não consigo me lembrar exatamente do que aconteceu, só sei que um clarão vermelho iluminou o vidro do meu carro e, depois, uma forte luz branca me cegou. Quando essa tal luz baixou, eu me vi em frente a um rio, com os pés descalços na grama, sob um céu negro sem estrelas e sem Lua, contrariando qualquer lógica — quem imaginaria estar num lugar claro como o dia, mas sem um Sol ou qualquer coisa que iluminasse tudo? “Você pretende ficar ai parado o dia inteiro?” perguntou-me uma voz feminina. Ao me virar, dei de cara com uma mulher de rosto roliço, curtos cabelos dourados e ondulados e uma maquiagem tão forte que eu poderia jurar tê-la visto em algum circo fazendo papel de palhaço. “Deixa-a passar à tua frente” Ordena-me outra voz, desta vez vinda de uma pessoa vestida com uma linda túnica branca, mas que eu não conseguia identificar como homem, nem mulher, nem muito menos se era negra, branca, ou de qualquer outra etnia.

Sob aquele rio estavam duas barcas: ambas enormes construções aparentemente feitas de madeira. Numa delas tinha uma pessoa igual àquela que me mandou deixar passar a minha frente a mulher de rosto roliço e uma linda menininha de pele morena e cabelos encaracolados. Na outra havia um sujeito, um homem que não parecia ter mais que uns cinquenta e tantos anos, vestido elegantemente ao lado de um menininho sem camisa, magro, cabelos sujos e preso pelos pulsos por algemas enferrujadas, ligadas por uma grossa corrente que era segurada pelo homem.

“Como te chamas?” pergunta a pessoa da barca ao lado da menininha de pele morena à mulher de rosto roliço. “Me chamo Glória Ferreira e Souza”, responde a mulher. 

— Achas que a ti pertence o reino dos céus? — Pergunta novamente a pessoa da barca.

— Pois sim, meu senhor! Nunca matei, nunca roubei.

— Sim, você nunca matou, roubou e, ainda por cima, cuidou muito bem do Bolinha, o cachorrinho da senhora. — Complementou a menininha.

— Mas foste egoísta! Traíste teu marido diversas vezes; fizeste de tudo para que tua filha não se cassasse com o colega de faculdade dela por ele ser pobre. Torno a pergunta-la: pertence a ti o reino dos céus?

— Sim! O desgraçado só me maltratava e eu queria apenas um futuro melhor para minha filhinha.

— Na verdade, interferiu a menininha, a senhorita queria apenas o dinheiro de teu marido e queria que tua filha seguisse o mesmo exemplo.

— Para ti não há lugar nesta barca!

— Então, para onde eu vou? — Indaga a mulher, surpresa. A menininha aponta para a barca com o homem elegante ao lado do menininho sem camisa.

Desgostosa, porém, sem opções, a mulher dirige-se à barca: — Ora, ora! Uma mulher que gosta de cebolas! — Exclama o homem elegante.

— E que nunca usou ceroulas. — Complementa o menininho.

— Que afronta, responde a mulher, brava, sou uma mulher fina.

— Mas que tem cara de cretina. — Responde o menininho. Eu acabo deixando escapar algumas risadas. Sorte a minha que ela não me ouviu.

— Então, continua ela, respirando fundo para se acalmar, para onde vai este barco?

— Esta barca com certeza não vai para o planeta Marte, mas é um lugar tão vermelho quanto. É um lugar pavoroso onde só há pranto. — Discursa o homem elegante, puxando o menininho pela corrente para dar espaço para que a mulher pudesse embarcar. — Vamos, esta é tua sina.

— Pois, em vida, você plantou sua ruína. — Complementa o menininho.

“Deixa também este passar à tua frente” ordena-me, novamente, a voz da pessoa de túnica branca, referindo-se ao outro sujeito atrás de mim: um rapaz alto, de cabelos arrepiados e desarrumados.

— Como te chamas? — Torna a perguntar a pessoa ao lado da menininha.

— Me chamo Pedro Lopes.

— Achas que a ti pertence o reino dos céus?

— Mas é claro! Eu nunca traí minha namorada nem maltratei ninguém. — Responde o rapaz, visivelmente orgulhoso de si mesmo.

— Até fez parte do movimento estudantil. — Complementa a menininha.

— Contudo, roubaste diversos computadores e componentes eletrônicos de tua universidade; drogaste-te e também à tua namorada.

— Mentira! Isto tudo é mentira! Você deve ser alguma alucinação! — Grita o rapaz, a pleno pulmões. Eu me lembro de já ter tido um colega assim, mas depois que ele ganhou na loteria e mudou-se para Miami, nunca mais tive notícias dele.

— Alucinação não somos, respondeu a menininha, e você sabe muito bem disso.

— Para ti não há lugar nesta barca!

O rapaz, então, jogou-se contra a pessoa de túnica branca, contudo, ele pareceu “não sair do lugar”. É complicado de explicar, mas mesmo assim vou tentar: sabe aqueles desenhos animados em que o personagem entra por um buraco e sai no mesmo lugar, em seguida? Então, foi mais ou menos isto que aconteceu.

— Tem mais pessoas querendo entrar. Por favor, vá para a outra barca. — Pede a menininha.

Não sei quanto tempo o rapaz ficou gritando com a pessoa de túnica branca enquanto tentava acertá-la com socos e pontapés, mas depois ele dirigi-se para a barca do rapaz elegante e do menininho sem camisa.

— Mas tinha que ser um burguesinho nojento, mesmo, para ter um pobre garotinho como escravo. — Diz o rapaz ao aproximar-se da outra barca.

— Ele não é meu escravo e sim meu aliado. — Responde o homem elegante.

— Cala tua boca, burguês! Pessoas...

— Cale você a sua e deixe de firula! Você merece o eterno castigo tanto quanto a outra mulher que só queria o dinheiro do marido. — Complementa o menininho, surpreendendo o rapaz.

— Já o alie...

— Aqui não há alienação, rapaz, só razão. Entra logo na barca e fique de boca fechada. — Interrompe o homem elegante, puxando o sujeito pela camisa para dentro do barco.

“Acho que agora chegou minha vez” pensei eu, todavia, mais uma vez a pessoa de túnica branca me pede para deixar alguém passar na minha frente, desta vez um sujeitinho magro, de olhos no fundo, com um boné vermelho na cabeça.

— Como te chamas? — Pergunta a pessoa de túnica branca.

— Francisco Santos Luz. — Responde o sujeitinho.

— Achas que a ti pertence o reino dos céus?

— Olha, meu senhor, eu sinceramente não sei. Nunca tive nenhum pertence realmente importante, só a minha família e a minha fé na interseção de Nossa Senhora e em seu filho, Jesus. Por isso não tenho certeza se o reino dos céus me pertence.

— Ele foi humano, cometeu diversos erros, é verdade, mas jamais deixou de se arrepender de nenhum, nem ao menos pedir auxílio para que não voltasse mais a pecar. Mesmo não tendo um tostão no bolso, nunca deixou de ajudar a quem precisava e até mesmo acabou em maus lençóis por causa disso ao acobertar um inocente em sua casa, tomando uma surra no lugar dele. — Diz a menininha, logo depois do sujeitinho terminar de responder.

— O reino dos céus pertencerá aos humildes de coração e àqueles que têm a alma de criança. Tu és um destes e, por isso, entrarás nesta barca.

Ao terminar de ver o sujeitinho passar pela pessoa de túnica branca e pela menininha de pele morena e cabelos encaracolados, novamente uma forte luz branca me cega. Quando retomo minha visão, estou deitado, olhando para lâmpadas brancas, no teto. Olho para os lados e vejo duas pessoas também deitadas, uma a minha direita e outra a minha esquerda. São camas de hospital e logo percebo que eu estava num hospital.

“Ele acordou” anuncia uma voz feminina. Não demora muito e um homem alto e careca, vestido com um jaleco branco e um estetoscópio pendurado no pescoço aparece ao meu lado.

— A batida foi forte, hein colega. — Brinca o homem, anotando alguma coisa numa prancheta marrom. — Que sorte a sua estar vivo para contar a história.

Pois é... que sorte a minha...

2 comentários:

  1. Relato típico de um evento de quase morte, no caso, por conta de um acidente. Pode-se supor que os outros personagens, aqueles que embarcaram nas "barcas" haviam morrido no mesmo acidente, talvez não. O que fica marcado é o fato de ter pensado em fazer uso adequado da potência do carro, mesmo em rua onde isso é vedado, terminando numa colisão forte e quase fatal para ele. Muito interessante e também instrutivo.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Olá! Então, eu confesso que não tinha pensado a respeito disto, antes — de fato, muito interessante essa análise. Grato pelo comentário.

      Excluir