Dia vazio

Aquela repartição era como qualquer outra: funcionava das oito às cinco, com pausa ao meio dia, para almoço.

O senhor doutor Danilo Ferreira, o encarregado geral, chegava sempre às oito em ponto e seguia para sua escrivaninha, que estava em um cômodo com várias outras mesas onde ficavam os outros encarregados e uma máquina de fotocópia.

Também trabalhavam nesta repartição menores-aprendizes que vinham de uma instituição conveniada à empresa — e que os cedia em troca de redução nos impostos e também nas despesas com recursos humanos enquanto eles adquiriram experiência.

Seu uniforme era inconfundível: um azul-piscina com listras azul- marinho, a logo da instituição e calça jeans — sem contar o crachá com a foto e o nome do adolescente.

A repartição nada mais era que um grande escritório responsável pelo atendimento de conveniados de um plano de saúde, direcionando-os aos médicos — e aos especialistas, caso necessário — ou então resolvendo problemas. Como não poderia deixar de ser, existia nela uma recepção e os "recepcionistas" nada mais eram que os menores- aprendizes — que também atendiam telefonemas.

Em dias "cheios", conforme dizia o próprio senhor doutor Danilo Ferreira para os expedientes em que a repartição era lotada de conveniados, era uma loucura, mas nos dias "vazios", ou aqueles em que tanto os adolescentes quanto o restante do pessoal podia sentar e ler um bom livro sem serem incomodados, era possível se ouvir o bater de asas de uma mosca. Também nesses dias os menores-aprendizes eram direcionados para outras funções, como a de "entrega recados" ou mesmo "tirador de cópias" — ou ainda simplesmente deixavam-nos quietos, a espera de alguma ordem.

O relógio em frente à mesa do senhor Vitór Barros, um careca baixinho encarregado pela seção de pagamentos, marcava três horas quando, em voltou às diversas tabelas e planilhas em sua mesa e em seu computador, ele resolve chamar uma das adolescentes para providenciar uma cópia de documento.

A adolescente em questão, apesar de já estar quase beirando os seus dezoito anos, não aparentava ter mais do que quinze; com luzes no cabelo e batom, sempre nos dias de calmaria ficava grudada ao seu celular e, principalmente, aos seus fones de ouvido. Aquele dia não era diferente.

"Por favor, Ana, tire para mim fotocópia destes documentos, sim?" pede o senhor Vitór Barros à adolescente. Ela então, prontamente, dirigi-se à máquina copiadora.

"É assim, simplesmente... que vai acontecer... sem saber, sem prever... acabei ligada em você..."

São as palavras que, de repente, começam a ecoar pela sala.

"Eu não vou mentir! Vou admitir! Eu sou louca por você!"

— Mas o que será isso? — Pergunta-se o senhor doutor Danilo Ferreira, sendo tirado de seu transe em meio à papelada que ele tinha que despachar ainda naquele dia. A cantoria seguia, mais e mais.

Ao terminar de tirar as cópias, Ana retorna à mesa do senhor Vitór Barros, entregando-as em suas mãos.

— E ai, quem é ele? — Pergunta o senhor Vitór.

— Como assim, senhor? — Replica Ana.

— Ué? A música que você estava cantarolando enquanto tirava as fotocópias: "estou ligada em você...".

Um rubor toma conta do rosto da menor-aprendiz: "sem perceber, ela havia cantado a música que estava a ouvir enquanto realizava seu trabalho". Não que cantar fosse proibido, mas com toda a certeza ninguém nunca mais a faria esquecer do dia em que o silêncio de um dia "vazio" havia sido cortado pelo cantar dela.

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